quinta-feira, 12 de julho de 2012

O BILHETE
Reginaldo tinha aversão ao jogo; nem mesmo a loteria o tentava.
Entretanto, uma tarde meteu-se num bonde do Catete, para recolher-se a casa, e no Largo do Machado, onde se apeou, pois morava naquelas imediações, foi perseguido por um garoto que à viva força lhe queria impingir um bilhete de loteria, – uma grande loteria de cem contos de réis, cuja extração estava anunciada para o dia seguinte.
Reginaldo resistiu, caminhando apressado sem dar resposta ao garoto, que o acompanahva insistindo; mas de repente lhe acudiu a ideia de que aquele maltrapilho poderia ser a fortuna disfarçada. Era preciso agarrá-la pelos cabelos! Comprou o bilhete e foi para casa onde o esperavam os tristes feijões quotidianos.
Ele bem sabia que, se dissesse a Nhanhã que havia feito essa despesa extra-orçamentária, não teria a sua aprovação; mas – que querem, – o pobre rapaz era um desses maridos submissos, que não ficam em paz com a cosnciência quando nõ contam por miúdo às caras-metades tudo quanto lhes sucede.
Ao saber da compra do bilhete, Nhanhã pôs as mãos na cabeça:
- Quando eu digo que tu não tens a menor parcela de bom-senso…! Aí está! Dez mil réis deitados fora, e tanta coisa falta nesta casa!…
E seguiu-se, durante meia hora, a relação dos objetos que poderiam ser comprados com aqueles dez mil-réis perdidos.
Depois disso, Nhanhã pediu para ver o bilhete.
Reginaldo, sem proferir uma palavra, tirou-o do bolso e entregou-lho.
- Número 345! exclamou ela. Um número tão baixo numa loteria de cinquenta mil números! Isto é o que se chama vontade de gastar dinheiro à toa! Algum dia viste, nessas grandes loterias, ser premiado um número de três algarismos?
Reginaldo confessou que nem sequer olhara o número. Como o garoto se lhe afigurou a fortuna disfarçada, ele aceitou o bilhete que lhe fora oferecido, entendendo que não devia argumentar com a fortuna.
- 345! Pois isto lá é número que se compre!
- Agora não há remédio.
- Como não há remédio? Põe o chapéu e volta imediatament ao Largo do Machado; o garoto ainda lá deve estar. Dá-lhe o bilhete e ele que te dê o dinheiro.
- Perdoa, Nhanhã, mas isso não faço eu: comprei! Nem o garoto desfaria a compra!
- Ao menos vai trocar o bilhete por outro, que tenha, pelo menos, quatro algarismos! Se tiver cinco, melhor!
- Faço-te a vontade: mas olha que sempre ouvi dizer que bilhete de loteria não se trocam…
- Faze o que eu disse e não resmungues! Tu és o rei dos caiporas, e eu tenho muita sorte!
Reginaldo não disse mais nada: pôs o chapéu, saiu de casa, foi ao Largo do Machado, e voltou com outro bilhete.
Desta vez o número tinha cinco algarismos: 38.788, Nhanhã devia ficar satisfeita.
Não ficou:
- Devias escolher um número mais variado: o 8 fica aqui três vezes… Mas, enfim, 38.788 sempre inspira mais confiança que 345…
Pois, senhores, no dia seguinte o nº 38.788 saiu branco, e o nº 345 foi premiado com a sorte grande.
Imagine-se o desespero de Nhanhã:
- Então, eu não disse que és o rei dos caiporas?
- Perdoa, Nhanhã, mas desta vez não fui o rei: tu é que foste a rainha…
- Cala-te! Se não fosses um songamonga, não me terias feito a vontade! Ter-me-ias roncado grosso!
- Ora essa!
- Um marido não se deve deixar dominar assim pela mulher!
- Olha que eu pego na palavra…
- Trocar um bilhete de loteria! Que absurdo…
- Absurdo aconselhado por ti…
- Mas tu já não estás em idade de receber conselhos!
- Bom; de hoje em diante baterei com o pé e roncarei grosso todas as vezes que me contrariares! Esta casa vai cheirar a homem!…
- A boas horas vêm esses protestos de energia!
E exclamando com os punhos cerrados e os olhos voltados para o teto: “Cem contos de réis!”, Nhanhã deixou-se cair sentada numa cadeira, e desatou a chorar.
(Artur Azevedo. Histórias Brejeiras. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966)
Use sempre um dicionário da língua portuguesa quando tiver dúvidas sobre o sigificado das palavras.
Agora, responda às questões abaixo.
A. No texto aparece o adjetivo cerrados, que não pode ser confundido com serrados. Preencha as lacunas das frases com cerrado(s, a, as) ou serrado(s, a, as) adequado.
1. Esses madeireiros fazem tanto barulho que é preciso deixar portas e janelas ______________
2. O pior não é isso. Ontem contei cem árvores __________________
3. Mesmo com os olhos _______________ vejo a destruição.
4. É mesmo. Até meu coracão parece que foi ________________
5. E quem dirá depois que aqui havia uma floresta __________________ e altaneira?
6. É isso. Floresta ________________ existirá apenas em fotografia.
B. Explique o sentido das expressões abaixo de acordo com o texto:
1 – por as mãos na cabeça
2 – saiu branco
3 – roncar grosso
4 – bater com o pé
C. No texto, a palavra conto significa determinado valor monetário. Qual o significado dessa palavra em cada uma das frases abaixo?
  1. Genival das Cruzes perdeu dez mil reais porque acreditou na conversa de dois desconhecidos que lhe aplicaram o conto do bilhete premiado.
2. Já está nas livrarias o mais recente livro de Ludovico Pinheiro, intitulado “Contos Inesquecíveis”.
D. Artur de Azevedo começa o texto informando que Reginaldo tinha aversão ao jogo. Como se explica, então, a compra do bilhete?
E. Reginaldo já esperava que Nhanhã desaprovasse o gasto de dez-mil réis, pois:
a. (   ) o bilhete era de número muito baixo.
b. (   ) o dinheiro destinava-se a outras despesas.
c. (   ) a mulher sempre reprovava os atos do marido.
d. (   ) o marido queria desafiar a mulher.
F. Quando Nhanhã mandou que trocasse o bilhete, Reginaldo esboçou certa resistência. Por quê?
G. Quando soube do resultado da extração da loteria, Nhanhã culpou o marido pelo insucesso. Na sua opinião o marido teve culpa? Justifique sua resposta.
H. Baseado no texto dê características de:
1. Nhanhã
2. Reginaldo
I. As constantes discussões do casal ocorriam, sem dúvida, por culpa de ambos os cônjuges. Na sua opinião, qual deles é mais culpado? Justique com argumentos coerentes.

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