quinta-feira, 12 de julho de 2012

ESTADO DE COMA
Quando entrou, a mulher parecia uma louca.
- Estou nas últimas.
- Calma – solicitou Dr. Novaes.
A mulher não obedeceu ao pedido. Num histerismo preocupante começou a despir-se, mostrando feridas inexistentes e mazelas prováveis. Falava muito e muito depressa. Dr. Novaes não conseguia acompanhar os sintomas que ela expunha.
- Isto, doutor, não pode ser câncer?
- Bem…
- Veja como está arroxeado. Eu já li muito sobre isso. Esta mancha escura não pode ser um melanoma? Eu tenho pavor de câncer, doutor. E o meu pulmão? Examine.
Tirou a blusa e o sutiã para que Dr. Novaes encostasse o ouvido na suas costas, sem que nada o obstasse.
- Seu pulmão – começou o doutor…
- Se eu ainda tiver pulmão. E as palpitações, doutor, são constantes. Disritmia. Tem hora que o coração parece ter parado. Fico fria, sinto um torpor no corpo, o braço dormente. Braço esquerdo. Esquerdo, frisava, de olho rútilo. – Não é coisa de coração? Quais são os sintomas de enfarte?
- O enfarte…
- E o fígado? Bata no meu fígado.
O doutor obedeceu por obedecer. Ressoou um “tum-tum” surdo.
- Se eu já não tiver com hepatite, ando por perto.
- A senhora está nervosa.
- E deveria estar calma? E os rins, que não funcionam direito? E nem falo da cistite, que não me dá um dia de sossego.
Tirou a saia para mostrar melhor as varizes que nasciam nos tornozelos e iam em frente. O doutor, muito paciente, fazia o que ela mandava.
- Aperte aqui.
Ele apertava.
- Veja aqui.
Ele via.
- Empurre aqui.
Ele empurrava.
- Ausculte, pressione, experimente, observe.
Ele auscultava, pressionava, experimentava, observava, obedecia com muita tranquilidade, uma calma que não era muito do agrado da mulher que, neste momento, não usava no corpo nada além dos sapatos que acabava de tirar.
- Já viu meu pé?
- Estou vendo.
- Pé chato. Isso pode ser a causa do cansaço. Mas eu uso sapato ortopédico, o pé chato nada tem a ver com o cansaço, tem?
- Não, não tem.
- No entanto, parece que não há um palmo cúbico de ar para que eu respire. Veja como suo nas mãos.
Ele viu que ela suava realmente.
E tinha dores no estômago pela manhã, o intestino não funcionava a contento, a vesícula devia estar preguiçosa, o pâncreas ficava como se tivesse comido brasa, a urina era escura um dia, avermelhada no outro.
Dr. Novaes não se abalou em nenhum instante. A mulher, inteiramente desnuda, deliberadamente deitou-se na mesa para um exame mais detalhado. Dr. Novaes fez.
- Pode se vestir.
- Como? Sem que o senhor examine o baço?
Ele, com um dedo sobre o baço, bateu várias vezes nele com o rígido médio.
- Vista-se agora.
Ela se disse impossibilitada. Sentia o tal sintoma de prostração de que tanto falara. Viu? Ainda bem que no consultório lhe tinha dado, para que o Dr. Novaes não pensasse que se tratava de hipocondria ou coisa semelhante.
Foi-lhe dado um pouco de água mexida com uma colher. Nada havia além da água no copo, mas o mexer da colher fez com que, ao beber a água pura, ela chegasse a sentir um gosto muito ruim.
- O que foi que o senhor me deu para beber?
- Nada – disse o Dr. Novaes.
- Eu preciso saber  o nome deste remédio. Em dois minutos me deixou outra. Estou reanimada, recuperada.
- Vista-se.
Ela começou a se vestir.  Vestiu-se sem parar de falar de doença. Dores de cabeça ao amanhecer, uma ponta de febre no começo da noite, insônia progressiva – Mandrix já fazia efeito semelhante à Cibalena – perda de apetite.
- Como isso, parece que comi um boi.
E a memória, não raro, lhe faltava. Seria amnésia? Essa doença existe mesmo, ou é coisa de filme? E os olhos sempre vermelhos. Há uma mancha num deles, vê? O olho direito. Não seria um carcinoma? Os seios doídos. Às vezes, não suportava o sutiã.
- A senhora está nervosa demais.
- Se fosse somente o sistema nervoso, era ótimo. Eu tomava uns sedativos, uns tranquilizantes, pronto. O estado geral é que é o drama. Devo me hospitalizar? Diga, Doutor. Preciso ser operada? É caso de cirurgia, ou…? O que o senhor disser eu faço.
- Então faça o seguinte – disse o Dr. Novaes. – Procure um médico.
- Hem?
- Eu sou economista. O Dr. Drúlio, que tinha consultório aqui, mudou-se para a Rua Sorocaba.
Daí, ela apressou-se a vestir a roupa.
(CHICO ANÍSIO. Feijoada no Copa. Editora Rocco, 1976, Rio de Janeiro)
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1. Pesquise e informe os órgãos do corpo humano que são diretamente atacados por estas doenças:
a) hepatite                         b) pneumonia                     c) cistite                   d) rinite
2. O que são sintomas?
3. Identifique e transcreva as palavras do texto que tenham estes significados:
a) dilatação permanente das veias
b) abatimento, enfraquecimento, debilidade
c) estado mórbido que se manifesta pelo aumento da temperatura anormal do corpo
d) diminuição ou perda da memória por motivo orgânico ou emocional
4. Já sabemos que a mulher esteve no escritório de um economista e não num consultório médico. Qual foi o motivo do engano?
a. (   ) Ainda existia a placa do Dr. Drúlio na porta.
b. (   ) O Dr. Drúlio e o Dr. Novaes eram muito parecidos.
c. (   ) A mulher estava habituada a ir aquele local.
d. (   ) A mulher pensou que Dr. Novaes fosse médico.
5. Que doença foi a primeira preocupação da mulher?
6. Quando a mulher perguntou quais os sintomas do enfarte, Dr. Novaes esboçou uma resposta, mas foi interrompido. Na sua opinião, como ele completaria a frase?
7. Mesmo não sendo médico, Dr. Novaes efetuou alguns exames na mulher. Na sua opinião por que ele agiu assim?
8. A mulher já havia feito outras consultas sem que os médicos encontrassem qualquer doença. Ela, entretanto, não concordava com seus diagnósticos porque não se considerava portadora de:
a. (   ) tuberculose        b. (   ) hepatite         c. (   ) hipocondria         d. (   ) disritmia
9. Quando o Dr. Novaes lhe deu água, houve uma súbita melhora no estado nervoso em que a mulher se encontrava. Por quê?
10. Nesse texto, o autor quis nos divertir com uma situação incômoda para os personagens. Entretanto, é possível extrair uma lição desse episódio. Qual seria?
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